top of page

Via Crucis

Em alemão, existem dois nomes para monumentos, que têm significados diferentes: DENKMAL, que é um memorial, algo para ser comemorado em memória de uma pessoa, fato ou objeto. Já no caso de MAHNMAL é diferente. Não há nada para ser comemorado e costuma ser uma obra exposta publicamente. Trata-se de um memorial que carrega em si o objetivo de sensibilizar e avisar às gerações do presente e do futuro que determinado fato histórico trouxe dor e sofrimento à humanidade e que, por isso, devemos nos lembrar dele para impedirmos que ele se repita. Nesta Semana Santa, além da pandemia, muitas dores do passado vieram à tona...


Após ser alvo de inveja dos sacerdotes, ter sido entregue a Pilatos que, por sua vez, se omitiu e o trocou pelo bandidão Barrabás, o Evangelista Marcos nos conta que Jesus foi entregue aos soldados:


“Então os soldados o levaram para dentro do palácio [...] vestiram-no de púrpura e, tecendo uma coroa de espinhos, lha puseram na cabeça. E o saudavam, dizendo: ‘Salve, rei dos judeus!’ Davam-lhe na cabeça com um caniço, cuspiam nele e, pondo-se de joelhos, o adoravam.”

“Sobe depressa, Miss Brasil’, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ‘40 dias’ do parto. Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando entrei. ‘Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca’, disse ele. Um outro: ‘Só pode ser uma vaca terrorista’.”

“Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe a púrpura e o vestiram com as suas próprias vestes. Então conduziram Jesus para fora, com o fim de o crucificarem. [...] E levaram a Jesus para o Gólgota, que quer dizer ‘Lugar da Caveira’. Deram-lhe a beber vinho com mirra; ele, porém, não tomou.

Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca leiteira Miss Brasil numa exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio para cima de mim e abriu meu vestido. Picou a página do jornal e atirou em mim. Segurei os seios, o leite escorreu. Ele ficou olhando um momento e fechou o vestido. Me virou de costas, me pegando pela cintura e começaram os beliscões nas nádegas, nas costas, com o vestido levantado. Um outro segurava meus braços, minha cabeça, me dobrando sobre a mesa. Eu chorava, gritava, e eles riam muito, gritavam palavrões. Só pararam quando viram o sangue escorrer nas minhas pernas. Aí me deram muitas palmadas e um empurrão.

“Então o crucificaram e repartiram entre si as vestes dele, lançando-lhes sorte, para ver o que levaria cada um. Era a hora terceira quando o crucificaram. E, por cima estava, em epígrafe, a sua acusação: O REI DOS JUDEUS.”

Passaram-se alguns dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se me esperasse. Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava com um cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco.

“Os que iam passando, blasfemavam dele, meneando a cabeça e dizendo: ‘Ah! Tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz” [...] “E um deles correu a embeber uma esponja em vinagre e, pondo-a na ponta de um caniço, deu-lhe de beber [...] E o véu do santuário rasgou-se.”

No meio desse terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma injeção. Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mas um outro segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. Ao voltar para a cela, o homem me olhou com ironia e disse: ‘Mas esse leitinho esse nenê não vai ter mais, não. E se não melhorar, vai para o barranco, porque aqui ninguém fica doente.’

Esse foi o começo da pior parte. Passaram a ameaçar buscar meu fillho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com cigarro’, dizia outro.



JESUS CRISTO foi um pregador judeu da Galileia, responsável pela implantação e difusão do Cristianismo. Batizado por João Batista e crucificado por ordem do governador romano Pôncio Pilatos, Jesus é retratado como um líder carismático e sábio. Considerado um profeta ou um filósofo (dependendo da corrente religiosa), atraía multidões que buscavam alento em suas palavras, e cura para seus males físicos. Mas Jesus Cristo era um líder que, acima de tudo, pregava o amor: “Novo Mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. Nisto saberão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros.” (JOÃO 13; 34-35)

Mais em: Evangelho de Marcos Cap. 15 | 16 – 38


ROSE NOGUEIRA é jornalista, quando foi presa em sua casa no dia 4 de novembro de 1969, atuava no jornal Folha da Tarde em São Paulo (SP) e militava na Ação Libertadora Nacional (ALN). Seu filho tinha acabado de nascer, há 33 dias. Após nove meses de prisão ela foi solta, sob liberdade vigiada. Em 1972, foi julgada e absolvida. Desde 2000, Rose Nogueira integra o grupo ‘Tortura Nunca Mais’ de São Paulo. Entre 2006 e 2009, presidiu o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe-SP) e, em 2007, publicou o livro “Crimes de Maio”. Em 2011, recebeu o título de Cidadã Paulistana.

bottom of page