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Os 125 anos do meu avô

Hoje o meu avô, Friedrich Kröner, completaria 125 anos. Sim, ele nasceu no dia 7 de março de 1897, num pedaço de terra adquirido pelo meu tataravô, Friedrich Wilhelm Kröner, batizado em 12 de outubro de 1801. O berço do aniversariante de hoje, em que até mesmo a malária era comum, se desenvolveu a duras penas numa região arenosa, alagadiça e infrutífera na Vestfália, Alemanha. E continua produzindo até os dias de hoje.


Meu avô Friedrich era o mais velho de quatro irmãos. Como não se sentia atraído pelas atividades de uma fazenda, aos 16 anos decidiu se preparar para se formar no Ensino Médio o mais rápido possível para poder frequentar uma faculdade. Conta ele em seu diário: “Em 1º de outubro de 1913 iniciei meus estudos com essa meta. Eu já havia planejado tudo: estudar 16 horas por dia, com um dia da semana livre para passeios pela cidade, e aproveitar os domingos tranquilos para me dedicar ao trabalho.”

A eclosão da I Guerra Mundial acabou antecipando o exame que lhe daria o Certificado de Conclusão do Ensino Médio em outubro de 1914 em Düsseldorf, sendo meu avô aprovado já no dia 6 de agosto de 1914. Então, a partir do dia 2 de junho de 1916, no exame final do ensino secundário na Escola de Ensino Secundário de Hamm, ele estava apto a ingressar em um ensino superior. Mas não foi bem assim que aconteceu. Afinal, a vida de cada um está entrelaçada com outras vidas, conectada a outras realidades. E isso a torna imprevisível.


Meu avô na frente ocidental, 1917
Meu avô Friedrich Kröner na frente ocidental, 1917

E, assim, “não foi a vida, mas a morte” (F. Kröner), que se apresentou àquele jovem de 19 anos, cheio de sonhos e nada empolgado com a guerra e suas exigências. Ele tinha horror à disciplina militar e “[...] se havia coisa que desde sempre abominei foi a ideia de ter que me tornar soldado.” Afinal, seu próprio nome já traduzia suas convicções: FRIEDRICH: significa ‘Frieden’ – ‘Paz’; e ‘Rich’ – Senhor poderoso. E, ao se ver obrigado a ir para o front, este “Senhor Poderoso da Paz” fez todo o possível para ser colocado na equipe de sanitaristas a fim de escapar de ter que virar soldado. O que ele não sabia, era que teria que sair da trincheira sob fogo inimigo para esconder ou resgatar feridos. Numa carta a uma amiga, ele conta um pouco do que passou ali:


“No começo eu ficava muito aflito e, quando logo nos meus primeiros dias no front uma granada explodiu na beira da trincheira ao meu lado, fiquei num tal estado de choque que tremi por várias horas. “Meu Deus”, disse a mim mesmo, “o que vai acontecer se a cada tiro você tiver um colapso!?” Na verdade, não era um sentimento de medo, mas a cada ataque eu era dominado por um tremor inominável que eu

simplesmente não conseguia controlar. Essa situação durou cerca de três meses. Com o passar do tempo, me acostumei a verificar o estado dos alvos anteriores e, rapidamente, procurava cobertura numa dessas crateras. É que eu tinha observado que, devido à trajetória de dispersão dos tiros, uma granada praticamente nunca explodia na mesma cratera gerada pela granada anterior. Quando chegou a época da grande ofensiva de verão dos aliados, fui dominado por tamanha calma e segurança que nem o mais severo fogo inimigo conseguia impedir-me de buscar feridos. Eu simplesmente sabia que sobreviveria a tudo isso – e certa noite veio a prova de fogo: nossa bateria vizinha havia sofrido um ataque intenso, e eu senti que ali havia acontecido algo. Peguei meu equipamento e fui para lá – em meio ao fogo cerrado –, encontrando um enorme desastre e, junto com os não feridos daquela bateria, retirei os que ainda estavam vivos. Isso deve ter durado umas duas horas, depois fui dormir. Lá pelas dez horas, o comandante da bateria mandou me chamar: “Kröner, é verdade o que contou nossa bateria vizinha, que você passou ali a noite toda buscando feridos sob fogo cruzado?” – “Em parte sim, Sr. Capitão.” – “Ouça, aprecio muito o que fez. Entretanto, preciso pedir-lhe que não se exponha mais do que o necessário, pois nós também precisamos de você”. Retorqui: “Sr. Capitão, tenho certeza de que nada vai me acontecer, mas sob nenhuma circunstância me exponho mais do que o necessário. Sempre sou covarde onde a coragem não me traz nenhum benefício”. O comandante da bateria me dirigiu palavras de grande louvor e me indicou para receber a Cruz de Ferro II Classe, a qual, algum tempo depois, tive permissão de prender ao uniforme. Penso que foi nessa noite que decidi me tornar médico.

A partir daquele incidente, passei a acompanhar nosso comandante da companhia em patrulhas contra os inimigos, e muitas vezes pude preveni-lo com meu instinto para o perigo: “Sr. Capitão, tenho o pressentimento de que devemos evitar esta zona, pois será bombardeada.” E daí, muitas vezes, acabávamos sendo testemunhas do bombardeio. Um belo dia eu estava sentado, lendo um livro no aterro de uma velha trincheira. Estava um dia maravilhoso – nenhuma nuvenzinha sequer, e nenhum tiro nas redondezas –, mas de repente ouvi a explosão de uma granada ao longe. “Ah”, pensei, “pelo visto tem um bestalhão atirando por aí. Talvez seja melhor eu me enfiar um metro mais fundo no buraco”. Não precisei esperar nem um minuto até o próximo tiro. Ele atingiu exatamente o lugar em que eu estivera sentado, pouco antes. Pelo jeito, o destino ainda me reservava algumas coisas.

No início de novembro de 1918, a guerra já se encontrava em seus finalmentes. Nós estávamos em retirada. Minha tarefa consistia em esperar até cerca das dez horas da noite por retardatários e feridos. Estávamos em Dun, junto ao rio Maas. Tínhamos que atravessar uma passagem estreita no meio do rio, que estava sob fogo contínuo. Quando chegamos perto do local mais perigoso, mandei parar a coluna de soldados e passei a contar pelo relógio o intervalo entre os tiros. Teria uns 45 segundos. Então, quando explodiu a última granada, falei: “A primeira carroça pode ir!” Tudo foi bem, também com a segunda e aí chegou a nossa vez. Então, logo no lugar mais perigoso um cavalo tropeçou – e logo ouvi também o tiro seguinte vindo em nossa direção. Com estardalhaço, a granada caiu ao meu lado no solo – mas não explodiu. Munição não deflagrada! Logo conseguimos reerguer o cavalo e estávamos salvos. Também ali a providência mais uma vez tinha sido bondosa comigo. No dia seguinte, o comandante da bateria considerou: “Pena que você não seja um oficial do front, e prefira ser um médico de vermezinhos”. Era assim que se chamava os médicos de campanha, por causa da cobrinha afixada no colarinho. “É isso o que acha, Sr. Capitão?”, retruquei. “Mas dessa forma eu provavelmente salvei mais vidas do que talvez tivesse destruído como oficial do front”.


Meu avô foi um ser humano incrível. Como médico, salvou mesmo muitas vidas. Mas ele era mais do que isso: era alguém que não brigava com a vida. Momentos de crise era aceitos, mas ele sempre dava um jeito de não ir contra seus princípios para ‘se safar’. Já no Brasil bem antes da 2ª Guerra Mundial, foi preso pelos integralistas de GV durante o conflito que acontecia no outro lado do mundo. Ao invés de lamentar este fato, um dia nos contou que aproveitou os dois anos de prisão para estudar grego – o que lhe foi “muito mais útil na medicina do que o latim que tive que estudar na escola”, disse. Ele era prático, até na hora de comer; e este legado passei aos meus filhos: “Vai tudo pro mesmo estômago!” E, já que é assim, bora se alimentar mesmo que seja tudo junto e misturado, ha ha ha...!





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